domingo, 18 de outubro de 2009

A GUERRA

Sinto-me suspensa no ar por duas mãos que me sustentam firme, mas carinhosamente. O espaço ao meu redor é sombrio. Homens vestidos de negro estão nas proximidades em um cubículo apertado e que recebe pouca iluminação e nenhuma ventilação. O ambiente é angustiante, denso e irradia muita tensão. Fico a me perguntar quem seriam essas pessoas que, com movimentos lentos, porém firmes, se portam como a aguardar que alguma coisa muito importante aconteça.


Eu ali estou perplexa e impotente, presa entre as mãos de um desses homens. Se em um momento sou acariciada, em outro sou apertada e jogada de uma mão para outra, em movimentos nervosos. Isso também me deixa nervosa e desconfortável.

Sinto-me totalmente dominada e sei que esse domínio se dá de forma bastante organizada. A pessoa que me tem entre suas mãos é a que parece comandar as demais. Estou indefesa. O que estaria acontecendo? Ou melhor, o que está para acontecer? O que será de mim?

Continuo nas mãos daquele comandante. Seu exército é diminuto, não passa de dois soldados, porém esses comandados seguem, sem pestanejar, as ordens que recebem.

Finalmente saímos daquele pequeno quarto. Caminhamos, agora, por um extenso corredor que, de tão sombrio, me assusta mais que aquele pequeno espaço que ocupávamos. Na verdade estamos atravessando um túnel. Não consigo definir a cor das paredes, pois estão sujas ou são muito mal pintadas, se é que foram pintadas um dia. O teto é perigosamente baixo, o que me passa uma sensação de opressão, e também recebeu o mesmo tratamento do pintor que cuidou das paredes. A pouca e espaçada iluminação contribui ainda mais para deixar o lugar triste. O meu medo só aumenta.

Os soldados que me levam, a cada passo que dão, ficam mais nervosos. Eu posso sentir o suor umedecer as mãos do comandante. O que estariam pensando? O que temiam? Seguem por aquele corredor lúgubre, em completo silêncio. Vez por outra, fitam uma tênue luz que se vislumbra bem no fim daquele funesto túnel.

Agora o inquietante silêncio começa a ser quebrado por sons ainda tímidos. O que teria acontecido? Escuto, ao longe, sons inteligíveis. Será música? Não sei. Não dá para identificar, mas percebo que existe alguma maleabilidade na constância daqueles sons. Se não é música, é algo que se complementa em ritmo lógico e cadenciado. Quieta, aguço meus ouvidos. Os sons me chegam com mais volume, à medida que sou levada na direção daquela luz, que fica cada vez mais forte.

Agora consigo identificar. Não é uma música, são várias e executadas juntamente com gritos desconexos. Meu medo só aumenta. Não entendo nada do que está acontecendo. Será que estou sendo levada ao patíbulo? O que teria feito para merecer tão triste fim? Será que aquelas pessoas comemoram minha execução? Continuo firmemente presa entre as mãos daquele impiedoso comandante, que caminha lentamente e a passos firmes na direção daqueles assustadores sons. Estou em pânico.

Preciso de respostas. Não agüento mais aquele suplício. Por que ninguém me acode? Vejo que algumas pessoas pelas quais passamos me olham com um ar de curiosidade e de apreensão, mas não sentem pena. Pelo contrário, às vezes, demonstram alegria. Recebo algumas tapinhas nas costas, enquanto vou sendo conduzida entre essas pessoas. Algumas crianças sorriem, gritam e pulam. Será que até aqueles inocentes se regozijam com o meu sofrimento? Que povo desalmado era aquele?

Posso notar que o corredor vai terminando e a luz está ficando mais forte. Aquela intensa luz me agride, pois meus olhos não estão ainda acostumados a tanta luminosidade. Só agora notei que o piso daquele corredor, diferentemente do teto e das paredes, é revestido com alguma coisa macia, apesar de ser preto e assustador. Algumas vezes sou jogada contra aquele piso, porém não sinto dor. Ao contrário, me sinto estranhamente confortável ao tocá-lo. Continuo, ainda, presa entre as fortes mãos do comandante.

O barulho, agora, é ensurdecedor. Estávamos no final do corredor e começamos a subir uma escada, que se estendia na direção daquela forte luz. O meu fim estava chegando, pensei. Apurei o ouvido. Era música aquilo que eu ouvia. Aliás, muitas músicas cantadas ao mesmo tempo. Por incrível que pareça, começava a me sentir aliviada e feliz. Será que nosso organismo nos embriaga com doses excessivas de alucinógenos para que não sintamos o sofrimento da morte? Só podia ser isso.

Chegamos ao topo da escada. Descortina diante dos meus olhos um grande espaço colorido. É um festival infindável de cores sem que eu consiga entender o nexo entre elas, talvez por ter cor para todos os gostos. O que vejo é bonito e contagiante, bem diferente daquele triste lugar do qual acabara de sair. O som dos gritos parece querer me enlouquecer. Se aquela multidão estava ali para presenciar minha execução, não o faziam com nenhum sentimento de ódio. Na verdade eu sentia uma áurea de contentamento e de prazer. Será que a minha morte provocava tanta alegria para aquele povo sádico? Voltei a sentir aquela sensação de perda. Na verdade, perda de mim mesma.

O céu está limpo e o sol brilha intensamente. Corre uma brisa agradável que me envolve e consola. Era um lindo dia para viver... e eu ia morrer. Aquilo não poderia estar acontecendo. Eu não lembrava ter feito nada para ser tirada do convívio dos meus. Aquilo era uma verdadeira injustiça.

Minha preocupação aumenta quando noto que o tom da música se modifica abruptamente. Enquanto o comandante me conduz para o descampado, acompanhado dos seus inseparáveis soldados, ouço gritos ameaçadores e que transmitem, desta vez, ódio. A quem ameaçam? A mim? O que teria acontecido para aquela multidão passar da alegria ao ódio com tanta rapidez? Estava atônita.

Parece que os soldados se assustaram com aqueles gritos ameaçadores, pois correu um para cada lado, deixando o comandante sozinho no meio do descampado. Eu, infelizmente, ainda continuava sob o domínio do comandante, presa entre as suas mãos.

Tão rápido como começou a gritar ferozmente, a turba voltou a entoar os cânticos anteriores, pulando de alegria. Essa alternância de comportamento me deixava mais nervosa e perdida.

Vejo que o descampado, agora, está cheio de pessoas. O meu comandante, bastante nervoso, me atirou, com força, no chão. Para minha surpresa, aquele solo era ainda mais macio que o piso do escuro corredor por onde passara. Estranhamente não sentia dores. Ao contrário. Eu estava gostando daquilo, como se houvesse em mim um sentimento masoquista. Não podia negar, estava mesmo uma delícia.

Havia uma multidão ao meu redor. Todos queriam me pegar. Eles me apalpavam indecentemente, comprimiam, beijavam, é isso mesmo: beijavam. Eu ali impotente me deixava luxuriosamente ser abusada. Eu continuava gostando. O que iria dizer aos meus pais? Engraçado, naquele momento, não lembrava muito bem deles.

O comandante não para de dar ordens. Parece até que seu exército aumentou. Devem ter chegado outros destacamentos. Vestem fardamentos diversos, mas o obedecem cegamente, da mesma forma que os outros dois soldados que o acompanharam até bem pouco tempo atrás. Falando nisso, onde será que aqueles covardes se meteram?

Depois de muita discussão em minha volta, um dos comandados me abraça com um carinho que eu ainda não havia sentido em toda a minha vida. Olha para mim com admiração e me faz deitar delicadamente naquele macio chão. Fico ali, inerte. Espero. O que iriam fazer comigo? Era chegada a minha hora? Não acreditava, pois ninguém machuca a quem trata com tanto carinho. Aquele soldado haveria de me proteger.

Não deu tempo nem de pensar. Subitamente outro soldado me bate com os pés levemente duas vezes e, para minha surpresa, me aplica um vigoroso chute na altura dos rins. Quero tossir e não me sinto estimulada. Estranho, mais uma vez não sinto dores, aquilo não me machuca, parece um carinho. – É... Devo estar no meu último estertor, deve ser a “visita da saúde”.

Sou jogada de um lado para o outro. Brigam por mim. Todos querem me maltratar. Parece até que a minha morte vale prêmio para aqueles soldados. Se as minhas roupas não estivessem tão justas, já teriam me rasgado toda. De repente acontece uma gritaria infernal. Há um soldado inerte, no chão. – Ei! Eu não fiz nada. Não fui eu que o atingi, gritava eu sem parar. A confusão estava formada e ninguém me dava ouvidos. Iniciou-se uma pequena briga entre os soldados. Meu comandante – parece até que eu estava gostando dele – ali no meio do tumulto gesticula, grita e empurra. Ninguém atende. Onde estaria seu poder de comando?

Minutos nervosos se passam e, para minha surpresa, aqueles que queriam me destruir estão ali discutindo e esqueceram-se de mim. Surpreendo-me detestando aquela situação. Passado tanto tempo sendo alvo da atenção dos meus algozes, estava ali desprezada e eu não gostava nem um pouco daquilo. Queria voltar a ser o centro das atenções, mesmo que aquilo significasse a antecipação do meu fim. Os gritos não param, a música fica mais forte e eu noto que nem todos estão a gritar. Uma parte daquela horda está inexplicavelmente em silêncio. Será que teria alguma chance com aquela momentânea discórdia? Eu não estava entendendo nada.

Para meu desespero, com alguns minutos os ânimos serenam. Um soldado, que me parece bastante apreensivo, como se carregasse grande carga de responsabilidade nos ombros, se aproxima de mim, me levanta do chão, me apalpa, me beija e, com inexplicável cuidado, me coloca suavemente de volta ao chão. Fecho os olhos. – É agora, pensei. Eu tremia vigorosamente.

O meu carrasco me deixa e se afasta vagarosamente a passos curtos e sem tirar os olhos de mim. Certamente para que eu não fugisse do meu triste destino. Eu também não tiro os olhos dele. Não há ninguém nas proximidades. Os soldados, à distância, estão olhando para mim, mas por algum motivo que desconheço não se aproximam. Parecem estátuas.

Após um longo e estridente som “trinado”, o meu executor, como que tocado por algo supremo, saiu da momentânea inércia e iniciou uma desembestada corrida em minha direção. Vinha bufando. – Está se mordendo de raiva de mim, murmurei baixinho, vai acabar com a minha triste e curta vida. Fechei os olhos e entreguei a Deus o meu destino.

Assim que chegou, me deu tamanho chutão na boca do estômago que achei que ia botar todas as vísceras para fora. Quase virei completamente ao avesso. Fui arremessada com uma força estonteante, mas não pude precisar a direção, pois viajava de costas, em altíssima velocidade e continuava de olhos fechados.

Ainda senti algo me tocar, pareciam mãos, mas estavam diferentes daquelas que me haviam acariciado, estavam mais grossas e estranhamente pareciam revestidas em plumas. Logo em seguida me vi enlaçada em uma espécie de malha que reduziu a velocidade do meu corpo, me envolveu com doçura e amorteceu a minha queda.

Ouvi um som estrondoso, muito maior do que tudo que já havia ouvido até ali. Alguns soldados passaram a correr loucamente, em todas as direções. Gritavam e pulavam como crianças. Surpreendentemente, constatei que, em contrapartida àquela algazarra, outros soldados estavam tristes e cabisbaixos. Tudo aquilo era uma incógnita para mim. O que danado estaria provocando aquela dicotomia?

Acho que nunca vou descobrir. O que verdadeiramente sei é que ao cair no chão envolvido naquela gostosa malha branca, ouvi, ao longe, vindo da multidão enlouquecida, um grito uníssono que parecia dizer algo como Tôôôôoo, ou Vôôooo, ou, ainda: Gôooool. Ah! Acho que era isso mesmo: Gôôooooooooooooooooooooooooool.

Logo depois me levaram de volta para o meio dos soldados para ser carinhosamente chutada, amassada e arremessada de um lado para outro. Até hoje não compreendi direito o que significou tudo aquilo, nem muito menos o porquê de eu haver me amarrado tanto nesse negócio. Acho que são coisas dos Deuses do futebol...

HERIBERTO GADÊ DE VASCONCELOS

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